sábado, 7 de abril de 2007

Intervenção Arqueológica no Castelo de Alcobaça -(resumo das campanhas de 2002/2004. Artigo do Arqueólogo responsável, Dr. Jorge António)

1. Introdução

A intervenção arqueológica, em curso no Castelo de Alcobaça, enquadra-se no âmbito de um projecto apresentado ao IPA, integrado no Plano Nacional de Trabalhos Arqueológicos de 2000. Conta, desde o início, com o apoio material e financeiro da Câmara Municipal de Alcobaça e com o imprescindível apoio de uma alargada equipa de voluntários, na grande maioria, estudantes de arqueologia da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa e, ainda, de estudantes do ensino secundário e de outros voluntários de Alcobaça.
O Projecto tem a direcção científica do arqueólogo signatário deste artigo, tendo a DR. Maria Augusta Trindade Ferreira, como consultora científica na área da história e o DR. Cláudio Torres, como consultor científico na área da arqueologia. Os trabalhos de escavação contam, ainda, com o acompanhamento técnico do Eng. Pedro Tavares, para a salvaguarda da estabilidade estrutural das muralhas e muros postos a descoberto.

2. Localização

O Castelo de Alcobaça[1] é uma fortificação localizada num morro sobranceiro à cidade, a uma cota máxima de 73 m, na margem esquerda do Rio Baça e a poucos metros da Praça 25 de Abril (Antigo Rossio). Pertence à freguesia de Alcobaça e tem acesso, actualmente, pela Avenida Maria e Oliveira.
A cidade de Alcobaça[2] é sede de um município com 406,9 Km2, tem dezoito freguesias e localiza-se na confluência dos rios Alcoa e Baça, a Oeste do Parque Natural das Serras de Aire e Candeeiros e a Sudoeste da capital de distrito, Leiria.

3. Síntese Histórica

As fontes históricas, no que concernem, principalmente, à fundação do castelo, são confusas e, até mesmo, contraditórias.
Maximiano de Lemos e Pinheiro Chagas colocam a hipótese do castelo ter, na sua origem, uma edificação visigoda dos sécs. VI ou VII, reedificada e ampliada pelos árabes, em 716, e conquistada, posteriormente, por D. Afonso Henriques, em 1147. Segundo os autores, terá sido parcialmente destruído pelos árabes, em 1195, após a incursão efectuada pelo “Miramolim”. D. Sancho I manda-o reconstruir, para defesa dos monges cistercienses, contra futuras incursões, evitando uma nova chacina. Esteves Pereira (1904, p. 162) e Pinho Leal (1873-1890, p. 72) acrescentam que, quando os árabes a tomam, dão-lhe o nome de Al-Cacer-Ben-el-Abbaci, por ser este o nome da porta de uma cidade de Marrocos, que tomou o nome de uma mesquita dedicada a Ben-Abbas. Pinho Leal refere, ainda, que D. Afonso Henriques designa esta fortificação de Castello de Ben-Ab-Cete, na carta de doação aos monges bernardos, datada de 1147.
Já Frei António Brandão (1632, p. 185) e Vieira Natividade (1885, p. 10) defendem que terá uma fundação islâmica, enquanto que Frei Manoel dos Santos (1710, p. 66, 429 e seg.) e Saúl Gomes apoiam a tese de que o castelo foi mandado construir por D. Sancho I, para defesa dos monges, contra futuras incursões árabes. O rei D. Fernando, apesar de herdar um reino estável política e economicamente, envolve-se na crise sucessória castelhana, levando-o a reparar e construir diversos castelos e a cercar, de novas muralhas, as cidades de Lisboa e do Porto, face a uma eminente ameaça do reino vizinho. Em 1369, no âmbito destas políticas e durante o abacialato de D. Frei Martinho[3] e não durante o abacialato de D. Frei João de Ornellas, tal como refere Frei Manuel de Figueiredo (1780, p. 225 e seg.), procede-se ao reforço do Castelo de Alcobaça, com uma Barbacã, à custa de um imposto lançado à população.
O sucessor de D. Frei Martinho, abade D. Frei João de Ornellas[4], coloca o Castelo de Alcobaça sob o domínio da Ordem de Avis.
Esteves Pereira e Pinho Leal referem que, devido aos danos provocados numa das torres do castelo, pelo terramoto de 1422, D. João I lança um imposto à população do couto, no intuito de aliviar o empreendimento sobre as Finanças da Coroa. Dois anos depois, o abade do mosteiro, D. Frei Fernando do Quental[5], leva a efeito as obras pretendidas.
Em 1456, o abade D. Frei Gonçalo Ferreira[6], beneficiou o castelo de algumas obras, entre as quais na Torre de Menagem, que lhe deram um carácter mais habitacional.
O terramoto de 1755 provocou danos irreparáveis no castelo, perdendo, desde esta data, a função de alcaidaria e a Torre de Menagem de cárcere.
Em
1838, a Câmara Municipal de Alcobaça delibera a demolição do castelo, devido à forte procura de pedra para construção que se fazia sentir na região. Até 1855, são doadas e vendidas milhares de carradas de pedra diversa e cantaria (Villa Nova, 1940). Cerca de um século depois, em 1956, a autarquia procede a obras de restauro e desaterra o castelo, no âmbito da visita a Alcobaça da rainha Isabel II de Inglaterra, que se efectuou no ano seguinte.

4. Descrição do Castelo

O Castelo de Alcobaça (Fig. 1 e 2) foi edificado numa pequena colina geológica, constituída por grés e argilas do Jurássico Superior, dando-lhe uma estável e sólida fundação.
Possuía uma Barbacã (B), de planta oval, com entrada localizada a Sudeste. Era reforçada com quatro cubelos, um dos quais de planta quadrangular, virado a Sudoeste, dois semicirculares, a Norte, e outro, de maiores dimensões, de planta quadrada e que ainda conserva uma seteira, virado a Nordeste. Os cubelos da Barbacã estão estrategicamente localizados, no lado de mais fácil acesso.
A Noroeste, entre a Barbacã e o Castelo, localiza-se a Torre Albarrã (TA), também designada de “Torre dos Sete Sobrados”. Tem planta quadrada, uma área interna de cerca de
40 m² e ligava ao castelo por uma poterna, da qual hoje nada existe. No séc. XVIII, Frei Manuel de Figueiredo refere que os vestígios que encontrou no local mostram que a torre ligava ao castelo, também, por caminho subterrâneo. A Torre Albarrã, à semelhança da Torre de Menagem e Castelo, foi edificada com silhares, de grés, de grandes dimensões.
O castelo, outrora circundado pela Barbacã e por um fosso, tem uma orientação Noroeste/Sudeste, uma área interna de cerca de
700 m² e apresenta planta rectangular, afunilando, ligeiramente, para Sudeste. Possui sete cubelos quadrangulares, quatro no alçado virado a Nordeste e três no alçado a Sudoeste. Teria duas entradas, uma junto à Torre Albarrã (PA), sendo posteriormente fechada, em data indeterminada, e outra, projectada para a entrada da Barbacã, entre a Torre de Menagem e o cubelo virado a Nordeste, com porta arqueada, encimada por uma janela (PM).
No séc. XVIII, ainda eram visíveis quatro colunas no interior do castelo, o que parece sugerir que o pátio interno seria coberto, porventura, por uma estrutura de captação de água da chuva para a cisterna.
Sobranceira ao Mosteiro, localiza-se a Torre de Menagem (TM), de planta rectangular e com uma área de cerca de
30 m², era também designada pelo “nome do Cardeal e homenagem”. Frei Manuel de Figueiredo referir-se-á, talvez, ao Cardeal D. Henrique[7]. Tinha janelas nos alçados Nascente e Sul e, no Nascente, ostentava uma imagem de Nossa Senhora da Pena. Por baixo desta, um brasão, com quatro vieiras postas em aspa, possivelmente, deverá ter pertencido ao Abade Frei Nicolau Vieira ou ao seu sobrinho, o alcaide Lançarote Gonçalves, nomeado em 1474.
Em 1925, o castelo é comprado a um particular de Aljubarrota, reaproveitando-se, três anos depois, a antiga cisterna para depósito de distribuição de água potável (Villa Nova, 1941). Actualmente desactivada, conserva, ainda, à superfície, a entrada e dois respiradouros. Ocupa uma área considerável, tem planta rectangular e tecto em dupla abóbada, separado por uma coluna central. A cisterna terá, certamente, na sua origem mais remota, outra de menores dimensões, coetânea da primeira fortificação edificada no local.

5. Diversidade Funcional

O Castelo de Alcobaça constitui um baluarte da presença de comunidades que poderão remontar ao século VI, e que se estende, quase ininterruptamente, até ao séc. XVIII.
A primeira estrutura a ser edificada, na estrategicamente localizada colina, poderá não ter sido mais do que uma torre de vigia/controlo de mercadorias, pessoas e animais, sobre as ricas terras de Alcobaça. Faria parte de um conjunto de outras torres, nomeadamente, a Torre de D. Framondo, a de Famalicão e a de Pederneira (Barbosa, 1987, p. 324-325).
Era, no Castelo de Alcobaça, que D. Sancho I[8], à semelhança do que fazia em Leiria, guardava parte do seu tesouro argênteo, tal como é referenciado no próprio testamento do monarca, datado de 1210.
Funcionaria, ainda, como defesa da linha de costa, pois importa não esquecer que, durante grande parte da Idade Média, o mar interior chegava à Fervença e, como tal, era fundamental o controlo da apertada garganta de acesso da bacia hidrográfica dos rios Alcoa e Baça a este dito mar interior. A própria situação geográfica do porto do Castelo de Alfeizerão, de acesso fácil a partir da costa, permitiu que, até ao reinado de D. Manuel, tivesse capacidade para receber 80 navios.
Segundo Pinheiro Chagas e Esteves Pereira, o Castelo de Alcobaça formava, com os castelos de Pombal, Leiria e Óbidos, uma espécie de linha avançada, na defesa da florescente cidade de Lisboa. Contudo, perde toda a importância militar, à medida que se introduzia a artilharia na arte da guerra.
Além de constituir um instrumento preponderante do exercício do poder temporal dos abades cistercienses, fundamentalmente como prisão, serviu de abrigo aos omnipotentes abades, face às incursões árabes.
Frei Manuel dos Santos refere que, até ao séc. XVI, os Abades Perpétuos tinham habitações no Castelo de Alcobaça e outras, de recreação, no Castelo de Alfeizerão. Possivelmente, será, a partir desta centúria, que a Torre Menagem passou a servir de cárcere, assim como o castelo de alcaidaria, até ao terramoto de 1755, que o deixou em ruínas.
Nem todos os alcaides terão vivido no castelo. Alguns deles deslocar-se-iam, apenas periodicamente, aos gabinetes que lá teriam, para despacho de expediente. Certo é que o espólio recolhido nestas três campanhas, associado ao séc. XVIII, sugere que o alcaide, em exercício em Alcobaça até ao terramoto, terá, de facto, vivido no castelo. Os alcaides do Castelo de Alcobaça eram nomeados pelo abade e não pelo rei, sintomático, mais uma vez, do imenso poder dos abades cistercienses.

6. Intervenção Arqueológica

6.1. Áreas Intervencionadas (Fig. 3)

6.1.1. Compartimento – I (CI)

Localizado no canto Sudoeste do castelo, entre os Compartimentos – II e III, apresenta uma área interna de 58 m2, sendo o maior dos compartimentos escavados até ao momento. Neste compartimento, foram encontradas diversas bases de pilar em grés, em diferentes níveis estratigráficos e estrategicamente localizadas, que teriam, originalmente, fustes em madeira, para sustentação de um sobrado. Associados a estas bases, identificaram-se diversos pavimentos de terra batida, alguns dos quais com restauros muito toscos e diferentes do original, acusando o enorme desgaste causado pelo uso intensivo dos mesmos.
No canto Sudoeste do compartimento, foi descoberta uma lareira (L1), constituída por uma pedra plana rubefacta, de grandes dimensões, rodeada por outras de menor dimensão (Fig. 4). Sobre a lareira e na zona envolvente, foi encontrada uma grande quantidade de cinzas e alguns carvões. A este espaço de preparação, confecção e de consumo de refeições, podemos associar alguidares, caçoilas, panelas e alguns potes, com evidentes sinais de fogo, e, ainda, inúmeros pratos, tigelas e copos.
Apesar de não terem sido detectadas estruturas de lareira directamente associadas, alguns dos silhares da muralha do castelo surgem rubefactos, situação verificada também no Compartimento – III, o que denuncia a existência de fontes de calor permanentes, provocando, por vezes, a fragmentação de parte destes.
A região de Alcobaça, sendo muito fria e húmida, obrigaria a que os compartimentos necessitassem de aquecimento constante, durante o Inverno. Logo, estas lareiras seriam utilizadas, não só na confecção de alimentos, como também para aquecimento.
Além da particularidade de se encontrarem rubefactos, verificou-se a existência de vestígios de argamassa, nalguns dos interstícios dos silhares, colocados a descoberto durante esta intervenção. Situação semelhante verificada, também, no alçado interno da Torre de Menagem. Tratam-se de situações pontuais, pois conservaram-se devido ao facto de se tratarem de locais protegidos da acção humana e dos agentes naturais de erosão.
A meio da parede virada a Norte, colocou-se a descoberto a soleira da porta do compartimento (P1), constituída por quatro lajes de calcário, aparentemente, reutilizadas. Nas extremidades, conserva os dois encaixes da porta, revelando, o da direita, um acentuado desgaste. A distância entre estes permitiu determinar que a entrada no compartimento teria uma largura de 1,45m.
Na II.ª Campanha, foi aberta, no interior deste compartimento, mais concretamente na extremidade contígua ao Compartimento – III, uma sondagem (Sond.), de 4 x 4m, a que se deu continuidade no ano seguinte. Além de diversos pavimentos em terra batida e de bases de pilar em grés, identificou-se um nível de incêndio.
Definiu-se uma mancha de cinzas, generalizada a toda a sondagem, conservando-se, ainda, in situ, três barrotes de madeira carbonizada (BM), pertencentes à cobertura do compartimento. Associada a este nível de incêndio, foi encontrada uma estrutura de lareira (L2), praticamente encostada ao muro que separa este compartimento do III, constituída por uma fossa, com laje quadrangular ao centro, e uma coroa, formada por grés rubefactos, de pequena e média dimensão (Fig. 5).
A cultura material exumada reduziu, consideravelmente, tendo-se recolhido, sobretudo, fragmentos de cerâmica comum, datáveis do séc. XVI/XVII.

6.1.2. Compartimento – II (CII)

Os Compartimentos – II e IV, dispostos perpendicularmente ao Compartimento – I e que se prolongam até ao canto Noroeste do Castelo, teriam, originalmente, constituído uma única divisão. Em data ainda a determinar, foi fechada a porta (PA) do castelo e este grande compartimento dividido em dois.
O Compartimento – II tem planta rectangular (6 x
4 m), que se caracteriza por uma certa irregularidade, e possuí uma área de 24 m2.
O aparelho de construção é constituído, genericamente, por pedras irregulares de pequena, média e grande dimensão, agregadas por uma argamassa bastante sólida, tornando a estrutura muito compacta.
Estrategicamente colocadas sob um nível de pavimento, identificaram-se duas bases de pilar em grés, semelhantes às identificadas no Compartimento – I, cuja função seria, igualmente, a sustentação de um sobrado.

6.1.3. Compartimento – III (CIII)

Contíguo ao Compartimento – I e no alinhamento deste para Nascente, apresenta planta quadrada e é o menor dos compartimentos escavados até à data, com uma área interna de cerca de 16 m2.
O aparelho de construção é semelhante aos demais, verificando-se um acentuado declive no pavimento de terra batida, desde a parede virada para o pátio até à muralha do castelo. Esta diferença de cota poderá explicar-se pelo desgaste causado por um maior uso dado ao fundo do compartimento, em relação à restante área do mesmo.
Como não foi encontrada nenhuma soleira de porta, nem detectada qualquer alteração estrutural que indiquem o local de entrada, podemos supor que se trata de um compartimento interior, cujo acesso se fazia pelo Compartimento – I . Contudo, as modificações a que esteve sujeita a cisterna podem ter destruído os indícios da entrada a partir do exterior.
No canto Nordeste, foi identificada uma lareira (L3), constituída por pedras de pequena e média dimensão, conservando, ainda, no interior, inúmeras cinzas, carvões, restos alimentares e alguns fragmentos de pratos em faiança (Fig. 6). À semelhança dos restantes compartimentos, também se identificaram, neste, bases de pilar
em grés. Após a escavação do pavimento, onde assentavam estas bases, foram identificados outras duas, também em grés.
A julgar pela cultura material exumada, nomeadamente dedais de criança, pensamos estar perante uma sala associada à costura, já que este tipo de trabalhos era, à data, efectuados por crianças.

6.1.4. Compartimento – IV (CIV)

O Compartimento – IV, localizado no alinhamento do Compartimento – II para Norte, apresenta planta rectangular e uma área interna de 24 m².
O acesso a este fazia-se directamente pelo pátio, através de uma porta (P2), com
1,40 m de largura, a julgar pela soleira ainda conservada in situ. Esta soleira, constituída por três lajes de calcário, preserva, nos cantos diametralmente opostos, dois gonzos, que evidenciam algum desgaste. A laje do meio apresenta, na extremidade direita, um terceiro orifício de encaixe de porta, o que sugere uma possível reutilização da pedra ou o alargamento da entrada.

6.1.5. Pátio Central (PC)

A sondagem aberta, no canto Sudoeste do Pátio Central, com uma área de 24 m², permitiu colocar a descoberto os degraus (D) de acesso ao Compartimento – II e uma das quatro bases de coluna, utilizadas na sustentação da cobertura do pátio.
Os degraus encostam ao muro do compartimento, acusando uma construção posterior, possivelmente, aquando do fecho da porta do castelo (PA) e no momento da divisão do compartimento
em dois. O aparelho de construção desta estrutura caracteriza-se por pedras irregulares de pequena e média dimensão, agregadas por argamassa.
A base de coluna (BC), em forma de V, é constituída por silhares de calcário, ostentando, ao centro, indícios onde assentaria o fuste, possivelmente, também em calcário.
Durante o processo de desmontagem do castelo, as cantarias e outras pedras de melhor qualidade terão sido das primeiras a serem recolhidas, nomeadamente, as lajes dos degraus de acesso à entrada do Compartimento – II, os fustes e os capiteis das colunas que sustentariam a cobertura do pátio interno.

6.1.6. Torre de Menagem (TM)

Na Torre de Menagem, foi aberta uma sondagem de 16 m², abaixo da cota do alçado original, que abrangeu cerca de metade da mesma. Grande parte do alçado que se projecta, de forma altiva, para o mosteiro, foi reconstruído em 1956, possivelmente, com os detritos deixados no local, aquando da desmontagem do castelo, ocorrida no séc. XIX.
O material arqueológico, bastante diversificado e recolhido, mais uma vez, em grande quantidade, do qual se destacam, fundamentalmente, as moedas, mas também algumas formas inteiras, tais como, pucarinhos, malgas, tigelas e testos, correspondem aos níveis de derrube, característicos do terramoto de 1755. Nos níveis estratigráficos imediatamente abaixo destes derrubes, recolheu-se, também, espólio associado aos sécs. XVI/XVII.
A escassez de materiais de maior qualidade, como as faianças e porcelanas, datáveis do séc. XVIII, leva-nos a validar, arqueologicamente, as fontes escritas, quando referem que a Torre de Menagem terá funcionado como prisão, pelo menos a partir do séc. XVI. Estes materiais, alguns dos quais importados do oriente, estariam nos compartimentos associados aos aposentos do Alcaide e não, naturalmente, à cárcere do castelo.

6.2. Estratigrafia

A estratigrafia, identificada no interior do Castelo de Alcobaça, é muito homogénea, tal como o aparelho de construção e os pavimentos de terra batida dos diversos compartimentos são muito semelhantes.
Sob uma fina camada humosa, identificou-se uma camada mais espessa, constituída por argamassas, telhas, tijolos e pedra de pequena e média dimensão, deixados no local, aquando da desmontagem do castelo. Este entulho é, não só sintomático da grande quantidade de pedra extraída no castelo, ao longo de 17 anos, como também é revelador de que era, sistematicamente, deixada no local, contrariando a directiva camarária, que obrigava a que “por cada 6 carradas de pedra grossa levarem 4 miúdas” (Villa Nova, 1940). Estes detritos acabaram por selar, felizmente, os níveis arqueológicos anteriores ao terramoto de 1755. Sob este entulho, conservavam-se os derrubes dos telhados dos compartimentos e, sob estes, pavimentos em terra batida, associados, sempre, a bases de pilares em grés.

6.3. Espólio Exumado

6.3.1. Cerâmica comum

A cerâmica comum (Fig. 7), recolhida em quantidades consideráveis, apresenta uma grande variedade de formas, predominando os potes, as tampas e as panelas, que ostentam sinais, bem evidentes, de exposição ao fogo. Outras formas, que revelam indícios bem vincados de absorção de carbono, são as caçoilas, alguns potes e os fogareiros, utilizados na confecção de alimentos. (…)

6.3.2. Candis

Os candis, utilizados na iluminação doméstica, caracterizam-se por fundos rasos e paredes esvasadas, pastas compactas, depuradas e de tonalidade acastanhada. A maioria dos fragmentos apresenta sinais claros de utilização, apresentando pastas enegrecidas.

6.3.3. Cerâmica vidrada

A cerâmica vidrada (Fig. 7), em menor número que a cerâmica comum, caracteriza-se, de uma forma geral, por vidrados brancos, castanhos, amarelados e verdes, tanto baços como brilhantes, quer na face interna, como na face externa. (…)

6.3.4. Cerâmica modelada e torneada

(…) A cerâmica modelada caracteriza-se, genericamente, por pastas avermelhadas, apresentando-se decorada com ônfalos, incisões largas e caneluras. Cronologicamente, podemos atribuir esta cerâmica ao séc. XVIII, por associação estratigráfica às faianças e cerâmica comum, datáveis desta centúria, embora este tipo de cerâmica surja, em contexto arqueológico, desde o séc. XVI.

6.3.5. Faiança

As faianças, recolhidas também em grande quantidade, caracterizam-se, tipologicamente, por formas pouco variadas, tendo-se identificado apenas pratos, taças e tigelas. (Fig. 8) (Fig.11)

Tanto os pratos lisos, como os decorados, apresentam vidrados de cor branca, amarelada e azulada, enquanto que as pastas revelam tons cremes, amarelados, brancos e, também, rosas.(…)

6.3.6. Porcelana

A porcelana exumada, com inúmeros fragmentos de reduzidas dimensões, resume-se a formas como pratos e tigelas. Os desenhos que ostentam, em tons de azul claro e escuro, parecem revelar, apenas, motivos vegetalistas e fauna. Tratam-se de peças importadas do Oriente e surgem em níveis estratigráficos do séc. XVIII.

6.3.7. Peças de jogo

Os aspectos lúdicos da vida também foram registados, arqueologicamente, nestas três campanhas. Símbolo de lazer e divertimento, as peças de jogo eram elaboradas a partir do afeiçoamento de materiais diversos, facto comprovado pelos achados conseguidos no Castelo de Alcobaça, mais precisamente, em faiança, cerâmica vidrada, cerâmica comum e telha, num total de cerca de cinquenta exemplares.(…)

6.3.8. Cachimbos

Na Torre de Menagem, em níveis estratigráficos do séc. XVI, recolheu-se um fragmento do fornilho de um cachimbo, queimado, em cerâmica comum, modelada, no qual é possível ver as dedadas do oleiro. (…)

6.3.9. Dedais

Os dedais em bronze, cujas dimensões sugerem tratar-se de dedais de crianças e adultos, foram recolhidos no Compartimento – III, Pátio Central e Torre de Menagem. Todos os exemplares apresentam-se intensamente decorados, com punção pontilhada.

6.3.10. Moedas

As moedas, maioritariamente ceitis, foram recolhidas em todas as áreas intervencionadas, mas, fundamentalmente, na Torre de Menagem, onde se recolheram, na III.ª Campanha, 74 exemplares, entre os quais um Ceitil de D. Manuel e um Real de D. João III. No Compartimento – IV, recolheu-se, ainda, um Real de D. Sebastião.

6.3.11. Medalhas e pregadeiras

No Compartimento – III, foi recolhida uma medalha em bronze, de forma oval, com 2,2 cm de largura máxima, conservando, ainda, a pega de suspensão, com o respectivo furo. Numa das faces, ostenta, aparentemente, a figura de José com o menino Jesus ao colo e, na outra, a figura da Virgem Maria.

Neste compartimento, recolheu-se, também, uma pregadeira (Fig. 12), com 2,7 cm de comprimento, com a imagem de Santo António, ostentando um cordão à cintura, o menino Jesus ao colo na mão esquerda e, na mão direita, uma cruz. Falta-lhe a perna direita e, no anverso, conserva, ainda, a pega com furo.(…)

A pregadeira, em bronze, constitui a segunda representação de Santo António, entre o espólio recolhido, pois, logo na I.ª campanha, recolheu-se uma pequena figura do santo (Fig. 13), em terracota, moldada, com apenas 2,7 cm de altura. Na base, conserva, ainda, vestígios de tinta vermelha e, no corpo, uma aplicação branca. Possui um furo, que a trespassa da cabeça à base, o que sugere que faria parte de um rosário ou terço.

No Compartimento – IV, recolheu-se uma segunda medalha (Fig. 14), ostentando, numa das faces, S. Caetano[9] e, na outra, o Beato André[10], ambos italianos, da Congregação dos Clérigos Regulares, fundada pelo primeiro, em 1524. Também chamados Teatinos, foram conhecidos, em Portugal, por Caetanos.

6.3.12. Vidro

Em todos as área intervencionadas, foram recolhidos inúmeros fragmentos de bordos, paredes, asas e fundos, de copos, potes e garrafas de vidro. É um vidro de grande qualidade, de diversas espessuras e decoração diversificada, nomeadamente, com inúmeros tipos de apliques. As cores também são bastante variadas e com diversos graus de opacidade, predominando o azul-escuro e o verde, além do branco. (…)

6.3.13. Contas

Além das formas atrás descritas, recolheram-se diversas contas de colar, terço ou rosário, de vidro branco translúcido, e uma outra negra, totalmente opaca, que, ao contrário das outras, que apresentam um furo que as trespassa de um lado ao outro, possui um pequeno aro oval em metal, para suspensão. No Compartimento – I, foram recolhidas duas contas de marfim, cuja forma incaracterística leva-nos a considerá-las como de colar, rosário ou terço.

6.3.14. Pau-preto

O pau-preto foi recolhido em grande quantidade, fundamentalmente, material em bruto. Destacam-se uma figa e diversas contas, profusamente decoradas com caneluras, apresentando, todos os exemplares, sinais de se terem partido, provavelmente, aquando do seu talhe.

6.3.15. Sílex

O material em sílex recolhido consistiu em dezasseis fragmentos de lascas, que conservam, ainda, restos do córtex, e em dois fragmentos de lâminas, com sinais, bem evidentes, de talhe. A cor deste varia entre o amarelado/acastanhado e o avermelhado.

6.3.16. Pedra

No compartimento – III, recolheu-se, também em níveis estratigráficos do séc. XVIII, uma bola de arremesso, em calcário, de grandes dimensões, e projécteis, em arenito, em diversos compartimentos.
Junto ao muro do Compartimento – I, que encosta à cisterna, foi encontrado um silhar de calcário (Fig. 15), de forma paralelepípeda, com marca de canteiro e espigão de ferro, no topo. Este silhar poderá ter sido trazido do Mosteiro de Alcobaça, uma vez que a marca de canteiro que ostenta é semelhante àquelas que lá se podem encontrar. No emparedamento da porta do castelo (PA), foram identificadas mais duas marcas de canteiro (Fig. 16), também semelhantes às que se encontram no mosteiro.

6.3.17. Osso

Os materiais fabricados em osso consistiram, exclusivamente, em instrumentos associados à tecelagem e/ou costura. Este espólio consistiu em quatro fragmentos de furadores, (…)

6.3.18. Colheres e facas

Entre as colheres e facas recolhidas, com lâminas em ferro, destaca-se um cabo de faca em marfim, decorado com círculos concêntricos.

6.3.19. Fauna

A fauna, bastante numerosa e diversificada, constituída por restos mamalógicos, malacológicos e por vértebras de peixes, representa os restos alimentares dos alcaides em exercício no Castelo de Alcobaça, assim como de todos aqueles que nele habitavam ou trabalhavam. Estes restos foram recolhidos, juntamente, com inúmeras cinzas e carvões (vestígios de lareiras) e estão associados a formas como caçoilas e panelas. Salienta-se o facto da proximidade da costa à data ser relativamente mais próxima que a actual, daí a abundância de ostras, lingueirão, berbigão, mexilhão e búzios, entre os restos alimentares exumados.

6.4. Enquadramento Cronológico

As três campanha de escavações, efectuadas no âmbito do PNTA, em curso no Castelo de Alcobaça, permitiram recolher uma cultura material de excepcional importância científica e arqueológica, em contexto fechado, associada a espaços de habitação/cozinha e “costura”.
O inegável valor histórico-arqueológico desta cultura material deixa-nos bastante expectantes na realização de futuras intervenções naquele local. O castelo reveste-se, assim, de uma enorme importância, na medida em que poderá, ainda, vir a dar um enorme contributo para a história de Alcobaça, nomeadamente, para a história da região antes da instalação dos monges de Cister.
O cruzamento das fontes escritas, com a leitura da estratigrafia identificada e com o respectivo espólio associado, leva-nos a definir oito momentos distintos da história mais recente do Castelo de Alcobaça, a saber:

1.º | Calcolítico

Os restos de núcleos e fragmentos de lâminas em sílex, recolhidos em praticamente todas as áreas intervencionadas, revelam a existência de uma indústria lítica, que denuncia a ocupação humana da pequena colina sobranceira ao rio Baça, durante o Calcolítico. Contudo, importa salientar que este material lítico surge, descontextualizado, em níveis estratigráficos do séc. XVIII, situação clara de estratigrafia invertida, resultante da abertura da cisterna, que terá violado níveis estratigráficos datáveis deste período.

2.º | Séc. XVI

O ceitil de D. Manuel e os Reais de D. João III e de D. Sebastião, marcam, cronologicamente, o séc. XVI, no Castelo de Alcobaça.

3.º | Séc. XVI/XVII

A recolha de cerâmica, de pasta avermelhada, muito fina, com decoração modelada, caracterizada por bordos recortados e ônfalos, datada dos sécs. XVI/XVII, revela a existência de níveis de ocupação humana, atribuídos a este período.

4.º | 1727-1755

Nos níveis estratigráficos datados do séc. XVIII, recolheu-se um fragmento de um fundo de prato, em faiança, com o brasão dos Silvas (Fig.17), e um fragmento de um fundo de tigela, onde se pode ler, de forma truncada, “ORREI”[11]. Consultada a lista dos alcaides de Alcobaça, verificou-se que o alcaide, em exercício durante o terramoto, era da família Silva. (…)
Até à data do arranque deste projecto, pairava a dúvida se os alcaides teriam vivido ou não no castelo. A riqueza da cultura material encontrada comprova, pelo menos, que este alcaide terá, efectivamente, vivido no castelo. Assim, Bento Luiz Correia de Mello, rodeado de faianças de grande qualidade, importando porcelana chinesa e especiarias do Oriente, é o alcaide em exercício e a residir no Castelo de Alcobaça até ao terramoto, o que nos permite concluir que o contexto cronológico registado será, grosso modo, posterior à nomeação do alcaide e anterior ao terramoto.
Este terramoto parece selar, de facto, um momento específico da história do castelo. A cronologia apontada para a cultura material é semelhante em toda a estratigrafia, já que os níveis de derrube, onde foi recolhido a grande maioria do espólio, estão associados ao terramoto.

5.º | 1755

Posteriormente a esta data fatídica, o castelo terá deixado de ser não só alcaidaria, como também a Torre Albarrã terá deixado de ser utilizada como prisão, ficando, assim, a vila de Alcobaça sem cadeia.

6.º | 1755-1838

Apesar do colapso, o castelo terá tido uma ocupação ocasional, uma vez que foi possível registar indícios do fabrico de rosários/terços e crucifixos, em pau-preto.

7.º | 1838-1855

O período de desmontagem do castelo, ocorrido durante a falta de pedra para construção, que se verificou na região de Alcobaça, está registado através da acumulação de uma enorme quantidade de entulho, efectuada ao longo de 17 anos, que selou os níveis arqueológicos.

8.º | 1956

As moedas, encontradas nos níveis estratigráficos superiores, com cunho anterior à década de 50, poderão ter sido perdidas no local, aquando da reconstrução do castelo em 1956, no âmbito da visita da rainha Isabel II de Inglaterra, a Alcobaça.

6.5. Considerações Finais

Embora a IV.ª campanha do projecto esteja destinada ao tratamento e inventário exaustivo do inúmero espólio exumado, está programado, para 2008, o retomar de um novo ciclo de campanhas de escavações no castelo, estendendo-se, posteriormente, à Torre Albarrã, ao fosso existente entre o castelo e a Barbacã e ao longo do possível trajecto da Barbacã.
Estas futuras intervenções serão determinantes para averiguar o período da fundação do castelo, apurando qual das teses avançadas está, efectivamente, correcta, mais precisamente, se foram os visigodos, os árabes ou já os cristãos, que primeiro edificaram no local.
A presença islâmica está bem patente na toponímia do concelho, nomeadamente, nos topónimos de Alfeizerão e Alpedriz. Contudo, a presença islâmica efectiva na região é mal conhecida. Logo, a identificação, no Castelo de Alcobaça, de vestígios de arquitectura militar e da cultura material relativas a este período, reveste-se de uma enorme importância. (…)

Jorge António



[1] I.I.P., Dec. n.º 95/78, D.R. 210 de 12 de Setembro de 1978.

[2] C. M.P.: 1/25 000, folha n.º 317.

[3] Abade do Mosteiro de Alcobaça, entre 1369 e 1381.

[4] Abade do Mosteiro de Alcobaça, entre 1381 e 1414.

[5] Abade do Mosteiro de Alcobaça, sucedendo a D. Frei Gonçalo, que morreu após ter ocupado o cargo, durante apenas quatro meses. É deposto, em 1427, através de Bula Papal.

[6] Abade do Mosteiro de Alcobaça, entre 1446 e 1460.

[7] Administrador perpétuo do Mosteiro de Alcobaça, desde 1542. Nomeado cardeal, em 1545, assume, em 1570, o cargo de toda a congregação cisterciense no reino, e rei, após a morte de D. Sebastião, em 1580.

[8] E não D. Sancho II, tal como refere Frei Manuel de Figueiredo, no manuscrito citado.

[9] Caetano Tienne (São) nasceu em Vicenza, em 1480, e morreu em Nápoles, em 1524. A congregação que fundou destinava-se à reforma do clero. Teve sede em Portugal.

[10] André Avelino (São) nasceu em Castro Nuovo, em 1521, e morreu em Nápoles, em 1608. Entrou para os Teatinos, em 1556, e foi um dos grandes obreiros da Contra Reforma.

[11] Parte do apelido materno do alcaide – CORREIA.