segunda-feira, 19 de março de 2007

2002 - Ano 0



Corria o ano de 2002 quando se iniciou a primeira campanha de escavações no castelo, encabeçada pelo Dr. Jorge António, e a Dr. Manuela Pereira na qual eu tive a honra de participar como voluntário. Com a devida autorização tomei a iniciativa de escrever para o Almanaque do "ACTV" (Arte, Cultura e Tradição na Vestiaria, movimento no qual me integrava) um resumo dos acontecimentos. É esse documento que passo a divulgar de seguida.

-Desenterrar História-

Na segunda-feira cinco de Agosto de 2002 o castelo de Alcobaça foi palco de uma agitação fora do normal. É comum em dias de verão, este ser visitado por turistas que preferem uma vista geral do Mosteiro a uma olhadela pela fortaleza. Mas as pessoas que lhe agitavam o perímetro não eram turistas, mas sim uma equipa dedicada a lhe desenterrar um pouco da história. Arqueólogos e voluntários preparavam-se de manhã cedo para começar os trabalhos de prospecção, depois das devidas apresentações, a afinidade foi imediata, era evidente que todos vinham determinados mas sem grandes expectativas em relação aos objectos a encontrar.
Os arqueólogos acharam por bem começar os trabalhos no interior do corpo do castelo, no canto onde as muralhas oeste e norte se encontram. Encaminhámos todo o material, e o trabalho começou, onde por acaso se encontrava um monte de terra atulhada. Durante todo o dia se tratou de a retirar e mesmo assim tivemos de continuar no dia seguinte. Ao fim do segundo dia quando chegamos finalmente à cota da primeira camada de sedimentos, o trabalho continuou mas agora com ferramentas mais pequenas.
Não foi preciso esperar muito para começarem a surgir objectos, que consistiam basicamente em fragmentos de cerâmica vidrada simples, de barro vermelho ou de faiança ornamentada em azul-cobalto, todas presumivelmente dos finais do séc.XVII princípios do séc. XVIII. Apareceram igualmente no segundo dia, contas de rosário e terço e pedaços da matéria-prima de que eram feitos (Pau Preto).
No dia seguinte o trabalho de prospecção à primeira camada de sedimentos continuou próspero, foram encontrados mais pedaços de cerâmica vidrada, de faiança, de bilhas, pedaços de chávenas em vidro acastanhado, mais contas de rosário e terço, e ossos de animais que constituíam a dieta alimentar de quem lá viveu. Ossos de bovinos, suínos, aves, bem como cascas de bivalves ou caracóis do mar. As surpresas continuaram até ao fim do dia. Encontramos uma colher sem cabo que supostamente seria em madeira, fragmentos do que seria um braseiro ou forno em cerâmica, pregos, um peso de pesca feito de pedra, e parte de um crucifixo do mesmo material que as contas.
A pouco e pouco, o espaço escavado começou a revelar o que se saberia mais tarde ser um compartimento quadrangular de orientação norte – sul. Tudo se ia tornando mais claro à medida que se iam encontrando os seus limites bem como o acesso ao interior. A esta altura as expectativas estavam por demais ultrapassadas, a quantidade de material surpreendeu-nos a todos. Este era um dos assuntos que predominava nos almoços do grupo, que entretanto se ia conhecendo cada vez mais e melhor.
Entretanto, e depois de acabada a prospecção da primeira camada, passamos para uma segunda, que se revelou rica em achados. Foram encontradas peças em barro vermelho com mais de 50% de superfície, bem como outros objectos mais pequenos, como bocas de bilhas, pregos, um anzol, uma faca sem cabo, ou fragmentos de peças em vidro de cor acastanhada e esverdeada. Tornou-se claro que nesta sala, a parte norte estava reservada à cozinha uma vez que foram aqui encontradas grandes quantidades de cinza e de restos de comida.
Mas o melhor estava para vir. É que no pavimento desta camada acabamos por descobrir pontas de seta em sílex, que terão sido transportadas involuntariamente para lá aquando da sua execução por quem o fez, possivelmente no séc. XVII com terra do monte do castelo.
A cada dia que passava ficávamos mais deslumbrados com os achados, para além da cerâmica que aparecia constantemente, começaram a aparecer alguns objectos diferentes. Alfinetes, agulhas, incrustações de metal adornado que serviria para decorar madeira, contas em marfim e vidro, algumas moedas do séc. XVII, uma figa em pau-preto, um botão, e uma fivela de cinto.
Tivemos, em alguns dias de trabalhar com condições atmosféricas difíceis, havia vento forte que levantava muito pó, e como se isso não bastasse, a chuva resolveu aparecer. Mas tinha de ser, afinal tínhamos apenas duas semanas de trabalho de campo, e como não paravam de surgir objectos, havia que aproveitá-las ao máximo. Com o começo da segunda semana o tempo melhorou, e os trabalhos continuaram a bom ritmo. Fomos encontrando mais cerâmica, mais faiança com motivos diferentes dos encontrados até à data, um cabo de uma faca em osso, dois anéis, uma pequena tigela em metal, contas de madeira, mais alfinetes, uma imagem de um santo com cerca de 3cm, e duas ou três peças de cerâmica vermelha praticamente intactas. Para além do trabalho de escavação, começou-se com o desenho técnico do perímetro, havia que registar as estruturas encontradas. Assim, a nossa sala quadrangular tinha duas bases de colunas simétricamente distribuídas, e uma pedra junto à sua parede Este, com uma incrustação que se presume ser a marca do canteiro.

Assim foi o primeiro ano de trabalhos no Castelo e podemos dizer que apesar do número limitado de dias e de pessoas, a campanha correu relativamente bem. Esperemos que para o ano possamos estar de volta com um maior número de dias e de pessoas para que assim a história do castelo e de Alcobaça seja melhor compreendida.



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